Umas, novas, Idéias

Thursday, January 19, 2006

IRREGULAR DES-ESPERA

Marisa lutava contra o vidro, mãos sôfregas, socando, tentando de maneira vã transcender o espaço. Sôfrega, remordia os lábios já vermelhos. Olhos encharcados, cálidos. A mãos combalidas já apenas acariciavam a janela entendendo sua impotência ante o mundo. Escorriam as horas. Era mesmo o fim.

Há dois dias quando passeava por uma rua feia, sem saída e de calçamento irregular, tropecei sobre uma moça parada na calçada. Me desculpei. Ela sorriu. Continuei o caminho de meu passeio. Fim da rua. Voltei pela outra calçada. Revi a moça. Ela acenou. Atravessei. Convidei-a para um café. Mas está muito quente para um café, ela disse. Sorri. Convidei-a para o que ela quisesse. Fomos. Tudo era simples como o calçamento da rua: irregular.

Sabia que era algo especial. Sorria calado com o número gravado em minha mão. O calor virou tempestade. Chuva. Água. Sem número. O desespero. Onde encontra-la novamente? Perdi. Sabia decerto. Sentei na rua. Chorei na chuva. Uma senhora passou, parou ante a mim. Oferendou-me um trocado. Se foi. O dinheiro dissolveu na poça e parti.

Em casa, já seco. Telefone toca. Voz que me lembra viver. É ela. Tinha meu telefone. Eu o dei. Sorri. Contei-lhe o ocorrido. Rimos juntos. Tínhamos em comum o amor pela arte, pela pintura. Ela me falava sobre Hooper e suas telas. Solidão, dizia ela, muita solidão. Hooper saber me fazer sentir isso. Conhecia alguma coisa do pintor, concordei. A conversa entrou na noite. A noite esqueceu de nós.

Perder o dia foi fácil. Sabia que reencontraria seu rosto ao fim da tarde. O tempo condena todos aqueles que querem recria-lo. Ri sozinho várias vezes. Funcionários questionavam se havia acontecido algo. Alegria. Minimizava. A vida tem as duas coisas. Às vezes em uma só.

Ela vinha com um vestido verde claro, solto no corpo. O vento lançava os panos contra sua pele, deflagrando estilhaços de minha libido. Ela era linda. Ao menos aos meus olhos. Caminhava peculiarmente. A rua a refletia cinza e mais bela. Tinha me guardado para alguém. Alguém que não conhecia. Alguém que estava agora me dizendo oi.

Estávamos indo pra minha casa. Ela sabia o que eu queria. Eu sabia que ela sabia que eu sabia, mas mantínhamos tudo num clima de adivinhação. Atravessamos a rua. Sua sandália virou, torceu pelo salto. Segurei-a pelo braço. Chegamos ao outro lado. Perguntei se estava bem. Bem, disse que sim. Sentiu falta da bolsa. Olhei para a rua. No meio, parada. Fui busca-la. Fui.


“ Atenção unidade mais próxima... atenção. Jovem gravemente ferido em atropelamento frontal. Repito: gravemente ferido. Risco de morte, de vida, de morte. Atendimento urgente.”

Droga!

Como ele está? Está bem? Quero vê-lo! Agora! Ag....

A porta da ambulância havia se fechado e pelo vidro era possível ver o rosto ensangüentado. Marisa furou o cerco policial. Tinha a angústia e a pressa dos deuses. Por que? Desesperava a todos com seu silêncio resignado. Era tudo uma dor. A cena. A rua. O medo. Encostou o rosto na janela e pode vê-lo. E pode acreditar. E chorou copiosamente. Chorou.

7 Comments:

  • At 9:50 AM, Blogger Vanessa Anacleto said…

    Acho que é possível que alguem vá dizer q seu texto fugiu do tema, mas eu adorei, estou fã dos seus textos.

     
  • At 9:54 AM, Anonymous Anonymous said…

    ai, que triste!

    gostei bastante, otavio!

    bejos

     
  • At 3:47 AM, Anonymous Anonymous said…

    Não fugiu do tema não, Ariadne, ele também iludiu o leitor. Bem, não a mim, nem a você, mas é um bom conto, de qualquer forma.

     
  • At 7:16 AM, Anonymous Anonymous said…

    Gostei. Muito. De como as frases. Suas frases. São Curtas. Bastante.

    Não é sarcasmo não. Bem construído. Parabens.

    Solari

     
  • At 8:57 AM, Blogger Douglas Evangelista said…

    Gostei do ritmo "ping-pong", que as frases curtas imprimiram ao texto. Otávio, vai até parecer meio arrogante meu comentário, mas foda-se: eu acho que você é um dos poucos que se preocupam, literariamente falando, com a forma, com o estilo do texto.

    Abraços.

     
  • At 7:59 AM, Blogger O empírico said…

    O ritmo do seu texto é foda, e sinceramente iria ser um dos meus votos... Só que, eu não consegui enxergar ligações com o tema ilusão...
    (talvez por limitações minhas mesmo... sei lá...)

    Abração!

     
  • At 1:08 PM, Anonymous Anonymous said…

    caramba... Completamente arrepiante! Adorei, continue escrevendo assim, hein (rsrsrsrs)

    mil beijos

     

Post a Comment

<< Home