Umas, novas, Idéias

Tuesday, February 21, 2006

B...ORGES



Aos amigos do Conversando Literaturas


Desde que comecei a ler Borges me senti mais perdido. Essa coisa toda: seus textos, as palavras e os mesmos, porém sempre intrigantes, quadros metafóricos do tempo fazem de mim alguém que não entende um palmo até mesmo em suas páginas em branco. Mas eu, logo eu que sempre fui tão eficaz na técnica de desvendar os acasos narrativos tão propositais em leituras mais exigentes, ma via agora diante de um grande dilema: conseguir de fato entrar no Labirinto de Borges.
Acho que não sei ler. Aliás, penso que nunca soube realmente ler. Penso. E nesse gesto de ataque contra o argentino recompus minhas armas de leitor. Para chegar nas idéias de Borges – se é possível tal coisa – tenho que experimentar a sensação de ser Borges. Não o Borges autor, nem o filha da mãe, nem esse cara que sacaneia a gente direto[1]. Tinha que me tornar o Borges leitor. Aquele Borges que sentava numa poltrona qualquer em Buenos Aires e enfiava a cara nos mais diversos clássicos da literatura universal. Imaginei-o (Devia ser muito chato ser Borges). Depois de algumas tentativas obviamente fajutas, percebi que nada dava certo por que tinha me esquecido de um fato deveras importante: Borges, o Borges que eu lia e tentava copiar-me em seu universo de leitor, conheci cego. Para mim, independente do quando acontecido, Ele era cego.
Comecei então a reler todas as obras de Borges com os olhos fechados. O incomodo era maior e a leitura muito fatigante já que não era de fato cego e minhas retinas arranhavam a semi-escuridão que minhas vistas simulavam ter. Por mais que compreendesse uma ou duas sentenças o todo do texto sempre fugia nestes lapsos de luz e certeza, no fio dos olhos.
Fiquei três dias sem dormir direito. E outros muitos sem dormir nada. Dormir... passei a ter raiva de fechar os olhos graças as lembranças indeléveis do fracasso anterior. Tomei a decisão mais justa para a situação: já que não entendo o que esse cara escreve vou queimar estes livros. Encontrei um amigo, dias antes, que me questionou sobre os fatos. Contei-lhe minha decisão. Seu maluco! Vai queimar obras primas do século XX e de toda a literatura mundial?!!! Vou te internar cara, vou te internar... Eram juras de raiva, vi em seus olhos. Sem se despedir de mim atravessou a rua correndo, num zigue-zague incompreensível. Confesso que até torci para que ele fosse atropelado. Em vão.
Recebi muitos telefonemas, protestos e até ameaças rasgadas contra minha empreitada pirotécnica. Caguei pra isso. Borges já tinha me irritado demais. À noite juntei os livros e algumas fotocópias de Borges que tinha comigo. No fundo do pequeno quintal, num vazio imenso e de densa escuridão tive a sensação sincera de estar sendo observado por muitas pessoas. Espalhei, com o cuidado e a perfeição de um erro, a gasolina sobre a pilha de inútil papel. Risquei o fósforo. Gasolina demais. Uma chama perseguiu meu riso. Minha voz calou um tanto até que não ouvi mais minha dor.
Duas semanas após, algumas operações depois, ainda no hospital, pude receber as primeiras visitas. Ninguém veio. No dia seguinte e no outro e no outro. Nada. Um dia a enfermeira, que tinha uma voz delicadamente áspera (imaginava uma mulher gorda, simpática e fanfarrona), tocou meu rosto e começou a desenrolar as faixas que tinham o cuidado de proteger os curativos. Estava ansioso para ver se tinha feito a imagem certa da funcionária do hospital. De repente suas mãos não me tocavam mais. Meu rosto estava mais leve, menos pressionado. Forcei abrir os olhos. Nada. Fingi distrair o escuro e forcei de novo. A voz áspera da enfermeira tornou a mim com recomendações; Não force muito os músculos da face pelo menos por enquanto. Acho que ela percebeu minha guerra articular. Parei, retornei, dei voltas em torno de mim mesmo, não vi o quarto, não revi o quarto. Não vi mais nada.
No dia seguinte retornou a voz. Eram medicamentos, comida leve, conversas sem pé nem cabeça. Alguma visita pra mim? Ninguém senhor. Ninguém?? Ninguém senhor. Olhei para mim mesmo naquela noite, no fundo do quintal, ateando fogo na obra de Borges. Lembrei de uma luz intensa, incandescente... meus olhos. Estava definitivamente cego. Pensei em voz alta. Percebi que no silêncio da enfermeira havia qualquer coisa de pena e confirmação. Naquela hora, sem saber o exato do quando acontecido entrei no primeiro hexágono de minha própria biblioteca.
[1] MORAIS, ( 2005).

6 Comments:

  • At 7:35 AM, Anonymous Anonymous said…

    Gostei da homenagem a este bastardo que é o meu escritor favorito.

     
  • At 12:32 PM, Anonymous Anonymous said…

    agora sim, poderá comecer a entender...

     
  • At 12:51 PM, Anonymous Anonymous said…

    Muito Poe.

     
  • At 10:26 AM, Blogger ideiasaderiva said…

    é meu caro. bom texto. gostei. sabemos, porém, que é uma farsa: há mais coisa em um livro do nosso guimarães (o rosa) que em toda a literatura borgiana.

    ainda assim, o cara é e ponto.

     
  • At 8:19 AM, Blogger marcio castro said…

    gosto do borges e não gosto de comentar autores... cada um é cada um... se ficarmos comentando tudo, perdemos a delícia de usufruir da leitura. só em resposta ao rapaz que citou guimarães rosa. adoro também, mas comparar pra que? que sentido?

    abraços

     
  • At 1:51 AM, Blogger ideiasaderiva said…

    fala marcio. a comparação é instintiva. assim sabemos que gostamos mais de borges que de zuenir ventura, mais de joão cabral que de chacal. este é o processo evolutivo natural: memorização e aperfeiçoamente através de comparação. é inevitável. a gente vê um "rambo" e sabe porque "o jardineiro fiel" é melhor.
    alguns excessos são cometidos.
    natural. a sociedade continua o processo e corrigi. é quase um ato científico. abraço.

     

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