Umas, novas, Idéias

Thursday, March 29, 2007

almoxari - FADO



Há muito havia perdido a mania de observar seu sono. O gesto de dormir se tornou rotina. Assim como as festas, os jantares e as declarações de amor. Olhávamos como se esperássemos partir do outro a primeira palavra de dissolução. Não importava o grau de obrigação que nos fazia permanecer juntos, não se ouvia de ninguém o fim. Aos poucos consideramos, separadamente, que estar juntos bastava de maneiras distintas. Não havia necessidade dos sorrisos nem da alegria das primeiras semanas. Estávamos juntos pelo hábito de reclamar durante as refeições e por poder culpar alguém pelas mínimas coisas que, por ventura, dessem errado. Os programas se repetiam na desculpa de não arriscar nada novo, nada que pudesse quebrar o pacto implícito que estabelecemos com a normalidade. As paredes já precisavam de nova tinta e creio que os papéis do banco sofreriam a revisão anual. Assuntos que nos mobilizavam em direções opostas. Gostava quando tínhamos problemas práticos. De fato, nunca conhecemos muito um do outro. Nos amamos, num primeiro instante, pelo entusiasmo e pelo encanto que encontrei na sua timidez sem queixumes e sempre em concordância. Você falou de proteção, uma coisa que eu te passava e que nunca entendi bem. O dia do assalto foi quando me disseste que gostaria de estar comigo mais tempo, por muito tempo. Senti o mesmo. Agora nos olhamos no relance da cama. Teu sono já não me diz esperanças antigas. Nossas brigas já não devotam a mesma graça quando fazemos as pazes. O espaço entre nós dois diminuiu. Cabemos menos em nós, não nos achamos mais um no outro. Você levanta como se fosse há dois anos atrás e me diz da necessidade de um café. Vendo teus olhos espreguiçando-se catei palavras que pudessem concordar.
- No que está pensando?
- Besteiras...
Olhava-me com a ternura de um parque de diversões, o mesmo parque em que nos vimos pela primeira vez.

4 Comments:

  • At 10:44 PM, Anonymous Anonymous said…

    Me deu a paz que há tempos precisava.
    Fui dormir sem culpa por sentir o mesmo.
    Obrigada, beijos, boa noite.
    Deus te abençõe. Amém.
    Sem saber, faz falta ver o seu sorriso tímido e o seu cabelo.
    Adeus.
    Obrigada por lembrar.

     
  • At 6:30 AM, Anonymous Anonymous said…

    Literatura.

     
  • At 3:55 PM, Blogger Unknown said…

    Em qualquer promissora expectativa criada para iludir a promessa de desgaste, no drummondiano verso sobre o amor rebaixado ao "estado de utilidade", na eternidade convertida em ruína, na melodia de suas tantas belas canções de fado, sempre me encantam as formas de reinventar o CANSAÇO.

     
  • At 9:44 AM, Blogger Denise Andrade said…

    Encanto. Folha que cai no outono. Fica lá, linda...
    Li várias vezes e me encantei de novo e de novo.
    Parabéns!

     

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