Umas, novas, Idéias

Friday, July 28, 2006

MOVENTE


Fazia cinco anos que estava parado, na mesma posição, sentado na mesma cadeira. Ignorava a fome, a sede e outras necessidades do corpo fisco que para ele representavam algo que tinha decidido deixar para trás. O passado impróprio que construíra distraído e sem intenções. Cinco anos que não movia um só músculo e quando o corpo pendia para um dos lados era auxiliado pelo rangido da cadeira que reforçava a vigília. Esperava friamente há cinco anos. Decidira consigo mesmo que procurar era indevido e infrutífero. Resolveu esperar e assim ficou num embate doloroso com o tempo, o espaço e as restrições orgânicas e humanas. Foram muitos os que tentaram convencê-lo de desistir dessa loucura. A esposa o abandonou em dois anos alegando não haver amor capaz de compreender tamanha invenção. Amigos, curiosos e outros parentes resistiram mais tempo, porém sabia que a esposa fora a única que tentara fazê-lo mudar de idéia por motivos reais de sentimento. Para os outros se tratava do exótico, da vitória na aposta que rodava as redondezas. O corpo estava debilitado, pele em osso expondo cada vértebra de maneira anatômica e perfeita, mas conservava intacto o raciocínio e as faculdades mentais. Tinha noção de tudo. Conhecia as pessoas que se aproximavam, as cumprimentava. Os que não conhecia perguntava o nome, queria saber de onde vinha. Mesmo com a voz rouca, quase falha proseava o suficiente para o cérebro anexar ao rosto o tom da voz e a lembrança. A noitinha, os curiosos dispersavam para suas casas e o silêncio enfim invadia a sala sem porta do casebre. Tentava fixar o olhar nalguma direção que desentendia. Na porta ouvia o rosto da moça ronronar. Era Isaura, jovem que ia todas as noites lavar-lhe o pé, único capricho que mantivera. A hora do escuro era quase transe. A menina apoiava a bacia entre as pernas e cuidadosamente banhava os pés do homem. Era um exercício de fé. No fundo, ela acreditava que algo maior se processava na alma dele. Tinha esperança de, numa dessas coisas, conseguir ver ou sentir o que o homem tanto esperava. Mais dias se passavam e seu estado físico sinalizava para uma impossível prorrogação. Os moradores preocupados mandaram buscar um médico de cabeça na capital. O doutor chegara e fora direto ao casebre já cercado por vários curiosos. Entrou, sentou-se ao lado do homem em estado definitivo de descrédito e começou um diálogo:

- Como está o senhor?
- De acordo com o que disser doutor.
- Como sabe que sou médico?
- A gritaria denuncia...
- Pois é... Mas, por que está aí? Por que não se levanta um pouco?
- Não posso doutor.
- Por que?
- Estou a espera-la faz tempo, não posso sair daqui agora.
- E o que espera?
- Coisa que nem sei como se faz, só sei que vem e ela virá.
- Pois bem. Mas por que não como nada, não bebe nada?
- Não faz bem não doutor. Despurifica. Quero estar vazio o suficiente pra quando chegar a hora.
- Entendo..

Percebendo que não ia arrancar nada de mais direto do homem, o médico se ateve a perguntas banais sobre dados pessoais e coisas lógicas para testar suas faculdades mentais. Concluiu que não havia nenhum distúrbio eu justificasse aquele caso e que o homem, apesar de fisicamente abatido, estava mentalmente em perfeitas condições. Sem mais o que fazer, partiu pra capital. Os curiosos dispersaram por volta da hora do jantar e passado algum tempo aparece a porta a moça com a bacia nas mãos. Ela ajoelha-se, fixa a bacia entre as pernas e começa a banhar os pés do homem repetindo o mesmo ritual de sempre. Ela havia presenciado a visita do médico. Ouvira tudo com detalhes de atenção e encucava-lhe a idéia do esperar mais do que nunca. Sem resistir ao interior incêndio que lhe corria, interrompeu o silêncio do ritual e questionou:

- O que espera?

O homem retornou seu olhar do infinito próximo e pousou-o nela.

- O que o faz esperar tanto?
- Pode falar novamente menina?
- Falar o quê?
- Qualquer coisa... fale, por favor, fale!

Sem compreender muito bem, a menina desandou a contar sua história desde criancinha. Falava das travessuras na beira do rio. Da morte da mãe. O sumiço do pai. E o velho ria-se desconcertadamente.

- Por que ri de mim?
- Não estou rindo de você.
- Então?
- Lembra do que me perguntou no início da prosa?
- Sim. O que você tanto espera. Mas e daí?
- Você ainda quer saber?
- Claro!
- Portanto lhe digo. Esperei todo esse tempo pela poesia. Imaginei chegando-me pela porta em forma de luz ou sombra. Ou então partindo de uma força que viesse pelas mãos e fizesse abastecer outras regiões desconhecidas. Sempre a fiz próxima, porém inalcançável. Às vezes achava que a tinha encontrado num silêncio ou numa algazarra, mas logo desacreditava. E agora, que tanto tempo se passou na minha face e na minha alma, venho surpreender-me com a imprecisão desta descoberta e a encontro em sua voz...

A menina riu. Continha surpresa e pranto no meio de seus dentes amarelos. Fechou os olhos, correu o de dentro e quando se recuperou ouviu o barulho do corpo no bater do chão. Ossos sob pele, um sorriso e as mãos trêmulas. Levantou-se num susto renovado. Na velocidade do gesto a bacia derramou uma água estranha que desenhada no chão dizia uns versos só compreendidos pelo acaso movente.

Monday, July 10, 2006

DEPOIS DISSO AINDA TEM MAIS?


Estou velho. Para além da perspectiva biológica de que envelhecemos um pouco mais todos os dias, estou velho. As horas de milhagem que venho acumulando em coletivos lotados, as preocupações que nunca pensei que pudesse ter aos 25 anos de idade; todos os problemas que acabam sempre se esticando até mim. Eu vinha com calma, reclamando, tateando o caminho, mas, de repente, a vida resolveu desesperar e nem mesmo consegui entender ainda. Hoje chego em casa para reabastecer-me de aborrecimentos, ser chamado de intolerante e ouvir discursos que praticamente transformam todos os meus esforços em obrigações mal cumpridas. Eu queria ter problemas meus, só meus. Era o que eu queria. Mas a idade estaciona o espetáculo do tempo enquanto cabelos brancos surgem rapidamente, o rancor se instaura nas curvas do rosto e a vergonha passeia em perguntas que não sei responder. Queria estar errado. Queria ser novamente aquele adolescente estereotipado que se acha eterna vítima. Mas não é mais assim, aliás, pensando bem, nunca foi. Estou velho. Todas as pessoas que conheço e prezo cabem numa pequena mesa de bar que vai se esvaziando junto de minha incapacidade de permanecer entre elas. O fato é que sentei-me na cama, porta fechada, e liguei a música num som surdo. A música que me traz uma lembrança impossível. Que me faz chorar por saber que poderia ser diferente. Aliás esse é o grande castigo do final: saber que poderia ser de outra forma, mas não poder mudar. Estou velho e não são os dias nem os atos. Me fizeram velho antes do tempo. Deixo a música repetir infinitas vezes até que a noite me prove que não haverá sono. Há laços que não se pode simplesmente ignorar, infelizmente são esses que sempre se fazem mais tensos e irresponsáveis. Estou velho e tão em mim que não há nenhuma possibilidade de fuga. A solidão ajuda, diminui o fado. Não entendo, mas sei o que gostaria que fosse. Deve haver outro lugar.

Saturday, July 08, 2006

COPAS FORA : NADA...


Não, não se trata daquele jogo de cartas tão tradicional. É apenas mais um trocadilho infame para terminar esta copa do mundo de futebol medíocre e sem nenhum grande destaque. Pois sim, afirmo isto sem medo e mesmo antes da final. Na primeira fase a seleção espanhola se mostrou interessante, jogando um futebol ofensivo e de rara simetria, mas como todos nós sabemos, a Espanha é famosa por ser amarelona e não deu outra. O time de Gana chegou a encantar ganhando fácil da Republica Tcheca, fora o baile, mas se deparou com o Brasil logo nas oitavas e, os então favoritos, brasileiros venceram e eliminaram os ganenses. O Brasil dispensa comentários nessas bandas internéticas. Para o escrete canarinho basta falar que só mesmo o Abel Braga pode assumir o comando da seleção e mudar alguma coisa. Sem grandes destaques ou grandes favoritos, a Itália foi construíndo seu melhor estilo campeão: Joga mal, defende bem, tropeça, cai, mas acaba chegando e ganhando força pra decisão. Por isso a Azzura é a favorita de longe para este domingo. A França, outra finalista, ninguém sabe porque chegou. Zidane enganando que joga bola há dois anos, Henry fingindo que sabe alguma coisa e jogando muito parecido com o Tuta. Eliminaram o Brasil, tudo bem, mas isso até Gana chegou perto... enfim. Restou para nós o bravo Portugal de big Phil. Limitado e sem muito poder ofensivo, o time treinado pelo brasileiro foi avançando bem ao seu estilo até esbarrar numa péssima e tendenciosa arbitragem do senhor Larrionda e na infâmia do pior futebol da copa: o da França. Sem destaques individuais esta copa vai se encerrando de maneira melancolica. Sem o Brasil na semi-finais; sem nenhum grande craque; sem nenhum lance inesquecível; sem nenhuma surpresa ou zebra. A copa do acaso e da reverência ao futebol feio termina e já não era sem tempo. O próximo mundial será na África do Sul e quando estas competições vão para países emergentes sempre acontece algo de bom ou de novo. Foi assim nos EUA, no Japão e na Coréia. O novo técnico da seleção brasileira tem de ser realmente novo, insisto em Abel Braga para o cargo. A ,que tinha de ter sido feita há dois anos no mínimo, tem que ser séria, não só nas laterais mas no ataque, no meio e principalmente no pensamento e na atitude da seleção brasileira. Não somos mais os melhores do mundo, simplesmente por que o que faz o futebol brasileiro melhor está sendo apagado: a arte e o talento. Estão valorizando outros valores em que o futebol europeu é muito superior, como a marcação, chutes de longa distância e bolas paradas. A seleção de setenta venceu e encantou por que tinha uma cadência própria e uma arte que nunca se viu igual numa copa do mundo. Venceu por que jogava com qualidade e identidade dentro de campo. Não existe mais o futebol de setenta, não por questões temporais, mas de comportamento. O futebol brasileiro é superior em técnica e talento, o que temos que fazer não é adequar isso ao novo estilo bruto do esporte, mas fazer com que estas características tão nossas voltem a ser o fundamental dentro do campo e não apenas nas propagandas de tv. Abel Braga como técnico, Géson 'canhotinha' como coordenador da seleção brasileira e a rapaziada, realmente jovem e habilidosa, pra renovar de verdade esse time, devolder o estilo próprio e a personalidade do futebol brasileiro e marcar novamente a história do futebol. Em dois anos tem olimpíadas, dois anos. É hora de transformar.

Sunday, July 02, 2006

FOTOGRAFIA MÓVEL



Como se não houvesse volta,
Ela passa.
Com ar indecente
De irrelevante devassa
Ignora continentes
E, com segurança, disfarça
Qualquer possível interesse pela vida.
Não volta e restaura no peito
O desespero da aorta
Reivindica o que falta – e falta? –
E mesmo se não for assim,
Ainda sobra
E rebate o ar, num passear ileso
De quem recebe, ignora
e aborta.