Umas, novas, Idéias

Sunday, October 29, 2006

UM PALMO DE AZUL


Salvou a minha mão da queda. Tinha restos de flores pelos cantos da boca. Um desenho de frase nos olhos. Era maior. Eu sabia da derrota antes mesmo de perceber-me vivo. Deixei-a partir pela calçada escura. Jogou-se num táxi. As horas rebateram a saudade. Freei o ímpeto suicida três vezes. Covarde, pensava em silêncio. Duas horas depois estava de novo no meu apartamento. Dois meses de aluguel atrasado, contas por pagar, geladeira vazia. Catei umas moedas, um rádio de pilhas e fui até o boteco trocar por uma garrafa de cachaça. Relinchava feito um cavalo triste. Havia conseguido. Bebendo as caras de maldade e desprezo do dia seguinte. Às vezes se pensa no porquê das coisas. Às vezes, só às vezes. Caiei a dor de branco e fui pro tédio que é imaginar. Ela tinha se ido num vulto amarelo e veloz e me deixado caído na calçada – ou eu já estava caído na calçada? A garrafa pelo meio e não saberia bem quando comecei. O tempo não faz muito sentido quando se conta sozinho. Eu sabia bem disso. Entardeci. A força do álcool desceu uma conhecida cortina de sono e coma. Estava caindo em mim outra vez.
A campainha é a invenção mais estúpida da humanidade. Tocou numa hora em que ainda me parecia de dormir. Destranquei a porta. Um hálito de azul invadiu minha cara. Sobrei no susto. Entrou como se adivinhando meu gesto. Parou para observar a bagunça. Abstraiu sutilmente os advérbios.

- Você é Carlos Laurêncio?
- Sou eu.
- Essa carteira é sua.
- Já vai?
- A carteira está aí.
- Quer um café?
- Acho difícil ter algum por aqui.
- Na esquina tem uma padaria...
- A carteira está aí.

Saiu deixando o ar repleto de uma insuportável esperança. Tem alguém com uma espécie de força superior que gosta de me sacanear. Falseia o vazio e de repente sobra por todos os lados uma nova coisa que não se entende. Deve ser alguma espécie de castigo aos suicidas falhos. Olhei para o apartamento. Também não beberia um café ali. Fui até a padaria.
Dias seguidos voltei ao mesmo lugar em que havia avistado o táxi partir. Não a vi. Estava cheirando a um desespero de lenha. Contornava o mesmo meio fio procurando pistas de seu rosto. Foram dias difíceis. Recebi a carta de despejo e chamei um avaliador para comprar o que restava da mobília. Não tinha pra onde ir, para que os móveis? O dinheiro seria mais útil. E foi. Até hoje comi e bebi todos os dias e já faz duas semanas que durmo de baixo desta marquise. Aqui mesmo, na mesma calçada. Um cheiro forte de urina. Quase nem percebo a solidão.
Mais duas noites e ela reaparece. Interrompo seu apressado caminho. Me reconhece por trás da barba e do hálito espesso de bebida. Não desvia. Me encara procurando algo que desconheço. Tento articular uma palavra, uma frase. Ela intercepta qualquer pensamento meu com gestos quase imperceptíveis.

- Outra vez. O que faz aqui de novo?
- Há três semanas espero você.
- Pouco tempo pra tanto desastre.
- Mora por aqui?
- Não.
- Trabalha?
- Não.
- Então?
- Passando apenas.
- Quer que te leve de novo pra casa?
- Estou morando aqui mesmo.
- E o apartamento?
- Estou morando aqui, agora.
- Entendo.
- Te esperei um bom tempo e não sei o que dizer...
- Não diga nada, minha resposta é não.
- Mas nem sabe...
- Não.
- Mas...
- Deixe-me passar, por favor.

Sem argumentações saí da frente. Estava livre o caminho e ela se foi dentro de um vestido cor de céu, rastejando elogios nas sandálias altas e nos pés a mostra. Caminhei o resto da noite numa direção que não conhecia. Cheguei ao cansaço. Refuguei. Tornei a voltar. O lago sorria o céu de volta. Um hálito azul invadiu novamente minha cabeça. Aos poucos tudo foi se tornando mais maleável, úmido, frio. Depois senti outra vez o céu há dois palmos de mim. Além.

Sunday, October 15, 2006

De volta ao front

Quem inventou essa guerra?
Não sei, mas lute!
Quando criança gostava de criar histórias de guerras e magia para os soldadinhos que tinha. Eles ganhvam vida e transformavam meu quarto e o quintal em um universo totalmente deslocado da realidade em que eu vivia. Quando pequenos não percebemos muitas coisas que ocorrem ao nosso redor, não por falta de inteligência, mas pela insistente premissa dos adultos em nos tratar como débeis mentais. Assim minha criatividade insana me transportava para guerras nunca vistas entre os soldadinhos verdes e os soldadinhos azuis. Meu primo me dizia que havia uma diferença nas cores. Cada uma delas representava um exercito diferente. Na sua teoria os verdes eram os norte-americanos, os azuis os alemães, os beges eram orientais... e assim por diante. Para mim, as cores definiam não nacionalidades e raças, mas objetivos em comum. Cada um defendia suas cores, seus companheiros e as guerras sempre acabavam com um saldo interessante: a possibilidade de destruir aquele mundo e fazer surgir outro com a velocidade do pensamento. Meus soldadinhos expunham armas e táticas incrivelmente bem postadas pelos beiras da cama e pelas bordas do criado mudo. Lembro bem de uma vez em que propus uma super e derradeira guerra entre diferentes tipos de bonecos. Eram quatro fortes exercitos: o dos soldadinhos; o dos Playmobills; o dos bonecos do He-man e o dos bonecos do Rambo. Com a astúcia e a calma sempre estampada nos rostos, os Playmobills venceram o conflito após saquearem as bases do he-man e do rambo, tomar navios e armas potentes e derrotar belicamente os soldadinhos. Instauraram uma nova Dinastia. Tudo isso que disse foi apenas uma forma de demonstrar um pouco dessa loucura que é a imaginação. É interessante perceber como desenvolvemos tantas histórias e brincadeiras quando crianças e como deixamos que isso se perca com o passar dos anos. Não acredito nessa coisa de geração videogame, geração internet. São desculpas. Quando passamos a nos preocupar desde cedo com coisas que mais coibem do que instigam, perdemos a vontade de criar e passamos a tentar repetir meios e fórmulas que já deram 'certo'. A infância, hoje, é um mero prefácio mal acabado pra uma adolescência precoce e uma juventude bitolada. Não é uma regra, mas é assustador perceber como milhares de 'pequenas' pessoas vão cada vez se tentando se tornar mais espertos, o quanto antes e esquecendo importantes partes de sua formação enquanto gente. As pessoas que um dia imaginaram qualquer coisa pra fugir de um lugar comum, agora encontram um espaço vazio enorme quando descobrem que são poucos os que fizeram como elas. A realidade é uma invenção que nos é imposta e que aceitamos, imaginar outras realidades é subverter a imposição. quando simplesmente somamos, na verdade subtraimos. o que eu quero é dividir. Hoje, encontro minha caixa de brinquedos antigos e reencontro meus soldadinhos quebrados, com seus corpos de plástico ressecados e gastos pelo, mas ainda posso vê-los, com toda disposição, rolando pelos campos abertos e pelos fronts de lençois embolados, simulando montanhas, atirando contra um inimigo que desde sempre me atinge e se chama tédio.

Friday, October 06, 2006

PARA QUE LER E TER UM BLOG?


Quando fiz meu primeiro blog, o fiz por achar que poderia escrever e ser lido por pessoas de vários lugares. Bem, logicamente percebi depressa que estava enganado. O primeiro blog serviu para um fim interessante: fazer o segundo, que já nasceria fadado ao fracasso como o outro. Os Blogs tem uma coisa esuisita que prendem nossa atenção e nos fazem dedicar várias idéias, que poderiam ser melhor aproveitadas noutras paragens, em suas páginas virtuais. Meu blog novo, aliás este em que publico agora, passou por diversas fases, todas elas incomuns e impróprias de publicação. Teve seus momentos cults, nos quais chegou a receber elogios de pessoas consideráveis nessa coisa de criticar os diários eletronicos alheios. Teve seus momentos Hebert Vianna, apostando que mesmo que corresse em busca de algo sempre chegariam na sua frente. Teve seus momentos de 'cadê minha bolsa?' e 'Por que tudo acontece comigo?'. Este blog certamente não é o que eu imaginei quando acessei a página do blogspot e me cadastrei. O Umas Idéias, que se tornou, Umas, novas, Idéias, na verdade não passa de uma repetição inconstante do que sou ou queria ser. Não é literatura quando se pretende literatura; não quer somar leitores quando expõe tópicos com dezenas de comentários; e quando pretende ser ouvido é replicado pelo vazio do anonimato do pé de página. O engraçado disso tudo é que o espaço que se abriu com a internet para a publicação de textos de todo o tipo é espantoso. Hoje qualquer pessoa que tenha acesso a rede pode publicar textos de diversas intenções. Poderia fazer um blog que reunisse as receitas de minha mãe e certamente teria muitas visitações. Poderia transformar essa capacidade de enganar os outros em parábolas de auto-ajuda e quem sabe começar minha carreira de publicação na editora sextante. Poderia escrever pequenos capítulos toda a semana e reeditar a idéia dos folhetins românticos. Poderia publicar qualquer coisa, qualquer besteira e torná-la pública, acessível a milhares de pessoas do mundo todo. Uma coisa que pode parecer, num primeiro momento, simples na verdade é uma loucura sem precedentes. A difusão da palavra escrita e dita 'literária' ganhou contornos avassaladores sobre o mercado editorial e sobre a mídia de pequeno porte. A internet, através dos Blogs, Flogs, Fotologs e afins, abriu um precedente inegualável e de duas latentes vias para a escrita e os que escrevem. O precedente parte do princípio de que todos podem escrever e publicar, uma espécie de democratização de um meio até então considerado elitista, mas, ao mesmo tempo, deixa uma enorme lacuna para quem lê (se alguém se interessa em ler) quando tenta distinguir do que se trata e se podemos denominar essa experiência de literária. Meus Blogs nunca tiveram a intenção de ser literários por que sempre quis com eles brincar das coisas que não sou quando tento escrever literatura (eu disse tento), mas é fascinante perceber o número de pessoas que leva isso realmente a sério e transforma seus diários virtuais em verdadeiros portifólios textuais de suas melhores experiências. O Umas, novas, Idéias está com os dias contados. Pode ser que seu fim chegue logo, com um simples desuso no atualizar ou o total abandono de login. Pode ser que o retarde até o último momento na tentativa de salvá-lo a qualquer custo e de continuar escrevendo sobre a melancolia de se ter um blog. Duro ou caroável, seu fim chegará como todos os outros, mas encontrará a casa limpa, a mesa posta, cada coisa em seu lugar. Bandeira.

Sunday, October 01, 2006

UM RECORTE PRA VIDA TODA



Somos iguais no que sentimos ainda que diferentes no que somos

Se todas as pessoas fossem realmente felizes, em tudo que fazem e sonham fazer, não teríamos essa massa disforme a que chamamos mundo. Pode parecer um pensamento demasiado pessimista, ou mesmo agorento para aqueles desafortunados detentores de uma esperança imortal e da mais leviana forma de sobrevivência, mas não os culpo nem os julgo, tratam-se de pessoas intúteis isoladamente, mas potencialmente necessárias para as estatísticas da decepção maior. Percebam, antes de mais nada, que não há coletivo que englobe realmente todas as pessoas. Não há referência alguma de entendimento entre os diversos grupos para se chegar a qualquer ponto. Nossa idéia de conjunto é a mais próxima possível de nossa individualidade. Somos en nós e nas pessoas de quem nos aproximamos a mesma coisa que jamais seríamos se expandidos em milhões. Formamos universos paralelos onde nossas tristezas, peculiaridades e familiaridades possam se juntar inconscientemente da maneira mais orquestada, tudo para diminuir a dor, qualquer que seja, de qualquer natureza. Se estender no outro é antes um ato de egoísmo do que propriamente de solidariedade. E egoístas seguimos esbarrando nossos pensamentos e nossas desilusões abstratas nas alheias até encontrarmos uma forma menos inútil de expressá-las ou exprimí-las. Somos felizes por dividir nossas tristezas, nossas fragmentadas experiências inertes ao senso comum. Desencadeamos mil vozes dentro de um silêncio usualmente rompido por uma euforia mentirosa e enganadora. Sobrevivemos por que percebemos, dentro de uma escala de mediocridade e agitada dissonância, nossas diferenças representadas em olhares outros, lugares outros, em mesmas e novas formas de entendimento. O mundo nada mais é do que a união de nossas realidades particulares. É uma tensão de tristezas e alegrias pré-programadas. Sempre gostei de me deixar levar, mas perdi o passo da dança. Tenho ainda nesse mundo alguns grandes amigos (talvez seja essa a melhor parte), uma paixão inexplicável por livros e pela escrita, um desconforto natural com e nas palavras e uma série de pequenas fraturas que serviram apenas pra me unificar nesse todo, conformado e desdito. Recortei a última imagem de meu acaso pra entender melhor que não se trata de algo mutável. Um dia vamos para um lugar qualquer onde não se identifiquem nem a memória nem a querência. Eu me vou.