Umas, novas, Idéias

Thursday, March 29, 2007

almoxari - FADO



Há muito havia perdido a mania de observar seu sono. O gesto de dormir se tornou rotina. Assim como as festas, os jantares e as declarações de amor. Olhávamos como se esperássemos partir do outro a primeira palavra de dissolução. Não importava o grau de obrigação que nos fazia permanecer juntos, não se ouvia de ninguém o fim. Aos poucos consideramos, separadamente, que estar juntos bastava de maneiras distintas. Não havia necessidade dos sorrisos nem da alegria das primeiras semanas. Estávamos juntos pelo hábito de reclamar durante as refeições e por poder culpar alguém pelas mínimas coisas que, por ventura, dessem errado. Os programas se repetiam na desculpa de não arriscar nada novo, nada que pudesse quebrar o pacto implícito que estabelecemos com a normalidade. As paredes já precisavam de nova tinta e creio que os papéis do banco sofreriam a revisão anual. Assuntos que nos mobilizavam em direções opostas. Gostava quando tínhamos problemas práticos. De fato, nunca conhecemos muito um do outro. Nos amamos, num primeiro instante, pelo entusiasmo e pelo encanto que encontrei na sua timidez sem queixumes e sempre em concordância. Você falou de proteção, uma coisa que eu te passava e que nunca entendi bem. O dia do assalto foi quando me disseste que gostaria de estar comigo mais tempo, por muito tempo. Senti o mesmo. Agora nos olhamos no relance da cama. Teu sono já não me diz esperanças antigas. Nossas brigas já não devotam a mesma graça quando fazemos as pazes. O espaço entre nós dois diminuiu. Cabemos menos em nós, não nos achamos mais um no outro. Você levanta como se fosse há dois anos atrás e me diz da necessidade de um café. Vendo teus olhos espreguiçando-se catei palavras que pudessem concordar.
- No que está pensando?
- Besteiras...
Olhava-me com a ternura de um parque de diversões, o mesmo parque em que nos vimos pela primeira vez.

Wednesday, March 21, 2007

Peraí, que o negócio é sério!


"Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
ele está cá dentro
enão quer sair.
Mas a poesia desse momento
inunda minha vida inteira."
Carlos Drummond de Andrade
Amigos que acompanham esse blog, estava preparando um texto para atualizar esta página, porém achei de bom grado compartilhar com todos que por aqui passam algo do senhor Octavio Paz, que, como diria o mestre Drummond, "vai devastando o Amazonas da minha ignorância." Trata-se de um trecho de O arco e a lira. Como o livro é esgotado há muitos anos e nem todo mundo tem, recortei um excerto da apresentação onde o autor discute a idéia de poema/poesia. Vou parando por aqui, por que o senhor Paz tem muito mais a falar que eu. Espero que lhes seja útil, como a vida.


"A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história, em seu seio resolvem-se todos os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não-dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da Idéia. Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana!
Como não reconhecer em cada uma dessas fórmulas o poeta que as justifica e que, ao encarná-las, lhes dá vida? Expressões do algo vivido e padecido, não temos outro remédio senão aderirmos a elas - condenados a abandonar a primeira pela segunda e esta pela seguinte. Sua própria autenticidade mostra que a experiência que justifica cada um desses conceitos os transcende. Será preciso, portanto, interrogar os testemunhos diretos da experiência poética. A unidade da poesia só pode ser apreendida através do trato desnudo com o poema.
(...)
Um poema é uma obra. A poesia se polariza, se congrega e se isola num produto humano: quadro, canção, tragédia. O poético é poesia em estado amorfo; o poema é criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente. É lícito perguntar ao poema pelo ser da poesia, se deixamos de concebê-lo como uma forma capaz de se encher com qualquer conteúdo. O poema não é uma forma literária, mas o lugar do encontro entre a poesia e o homem. O poema é um organismo verbal que contém, suscita ou omite poesia. Forma e substância são a mesma coisa."
In: PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de janeiro: Nova fronteira, 1982.

Saturday, March 10, 2007

Algures



"Força é mudares de vida."
Rilke por Bandeira por Fabiano Morais

Há alguns dias venho pedendo meu sono. Já não tenho a mesma tranquilidade quando encosto o corpo cansado no conhecido colchão. Me escaparam as certezas, os planos pessoais. Venho imaginando novos espaços pra vida, algo como traduzir-se em outra pessoa. Por isso parei de escrever minha nova série de poemas, não quero influenciá-los com nada que me pareça mais importante que a palavra. Há alguns dias regulo a comida de maneira a dividir as horas sem desespero. Os livros de Drummond, Bandeira e Pessoa estão sobre a escrivaninha. Uma foto sua embala a tela de meu computador e assim vou tentando encontrar assuntos. O que faz tudo isso parecer novo? Creio ser possível o que nunca me foi. Mas só por alguns instantes. O sono recupero durante as tardes, entre as pequenas besteiras que escrevo, rasgo e jogo fora. Moldei algumas idéias sobre a vida que por ti venho questionando. No fim, sei que estarei apto a retornar ao meu mundo pequeno ainda que com novas dores, ou com as mesmas de sempre. Se me perguntares o que quero ou desejo, certamente falarei sobre o teu nome e futuros partilhados. Se não queres nada disso, nem perguntes. Deixe-me quieto e inquieto, esperando a noite chegar.

Saturday, March 03, 2007

"Teus joelhos e tuas costas nuas"


Quando você me diz essas coisas, pense antes. Acredito demais. Espero demais. Tenha cuidado. Não faça de suas palavras cordas que se enrolam em minha cintura, prontas para me salvar desse penhasco de ilusões que eu mesmo criei. Quando você vier – se é que realmente vem como disse ao telefone – venha com calma. Soletre as batidas da porta e conte até muitas dezenas antes de repousar as vistas sobre meu corpo. Espalhei bilhetes por toda a casa para que possa entender o fato: não te espero desde ontem, espero faz tempo. Essa noite será outra como as outras que foram seguindo ao longo dos anos. Nunca te disse diretamente o que queria, mas sempre soube de suas respostas. Você recupera as vogais da fala alheia e as transforma em silêncio. Eu quero teu silêncio como abrigo, deserto argumento.
Todas as coisas do quarto parecem rolar pelas paredes e portas. A janela range uma dor ausente e sentida, enquanto me enrolo no tapete como se pudesse me esconder por muito tempo. Você chega. Como prometera ao telefone traz suas malas, uma caixa de bombons e a boca levemente desfeita de batom. Olha pra mim como se interrogasse meu medo. Põe as malas no chão, junto da cômoda, senta-se no braço da poltrona muito de leve, como se flutuasse e pergunta se tinha feito o café que lhe prometera. Aos risos me conta coisas de sua vida. Entre uma caneca e outra fala dos lugares em que esteve, as pessoas que conheceu e as que não quer ver nunca mais. Vou deixando de lado a idéia de abandono que me perseguiu por todos esses anos. Sua voz torna o ambiente mais claro, devassa as cortinas. Enquanto levamos suas malas para o quarto me diz o quanto será bom ficar por aqui. Deixo-a arrumando suas coisas, invento uma desculpa qualquer e vou até a cozinha. Ponho água para ferver e passar outro café. Da janela vejo o dia adeusando. Você fica. Pelo menos por hoje.