Umas, novas, Idéias

Wednesday, November 22, 2006

Acorda que vai cair, porra!


Outro dia fiquei imaginando porque algumas pessoas encontram grandes problemas onde um simples ato pode resolver tudo. Pensar é uma merda, pois de uma idéia ridícula como essa vamos desdobrando outros caminhos reflexivos que, de uma forma ou de outra, sempre levam a pensar em tudo como se dissesse respeito a nós mesmos. O sujeito realiza a ação ou as ações, essa é a estrutura de oração que conhecemos pela escola e pelas gramáticas tradicionais, mas vejam só, se o sujeito não pratica ações ele não é um sujeito e daí desencadeia uma série de desconstruções que vão desde a sintaxe até a morfologia. Essa é a merda de pensar, fugi da idéia em si pra explorar como a construi textualmente. E depois não é só isso, de repente surgem aquelas insanas questões de quem desconhece uma determinada situação mas mesmo assim se acha capaz de refletir sobre ela tipo: Como será ser pobre no Japão? ; Como será ter sindrome de down no leblon? ; Por que não nasci em 1950 pra ter vinte anos na copa de setenta? E daí surge o medo de nunca solucionar questões como essas. Na verdade tudo iso não passa de carícia do cérebro pra disfarçar as verdadeiras aflições que nos cercam e que vão do dinheiro pra comprar o pão até aquele amor que um dia você ainda consegue escquecer. Pensar me faz ter dois trabalhos que nunca se anulam. O primeiro consiste no simples entendimento básico das coisas que me cercam e que agem ou reagem em minha vida. O segundo produz escalas maiores de um hormonio que não sei o nome, mas que afeta diretamente tudo aquilo que imagino e só. Perceber o real como ele nos é apresentado é muito difícil, tanto na aceitação como na inclusão. Gosto de chegar da janela e ver a enorme parede sem reboco e de tijolos tortos que o vizinho achou por bem deixar assim. Ver é pensar distraído, outra vez esa tela.

Sunday, November 19, 2006

ORAL



A língua passeia nos lábios-
Grandes-
Extensão completa dos lábios,
Carne úmida e trêmula
À porta do espaço vazio
do vão.

Encontra entre o caminho
O ponto exato
A voz de um arrepio
Que perpassa o corpo e os pêlos
E esvazia a alma num espasmo
Incompleto e arredio.

Aos poucos,
A carne esvazia a carne
E deixa gosto de vida.
É um agradecimento líquido
Invade, novidade e deita
Sobre o ar
Um espaço de entre...
Começo, fim, começo.

Aperta os seios,
A calma dos seios...
As pernas fingindo.
Tudo normal no abraço -
igual ao início de todos os sonhos.

Wednesday, November 15, 2006

NATAL BÃO SÓ MESMO NO JAPÃO


Sem a intenção do clichê, porém consciente de que não se pode fugir dele numa frase como essa, o ano está acabando e como passou depressa... Pois é, há muito tempo que novembro é uma micareta do natal. Nos deparamos com casas enfeitadas, a musiquinha da leader magazine toma conta de nossas cabeças insanemente e retornam todas aquelas comidas de duplo sentido que sempre trazem a chamada da praça é nossa no pacote. Mas de fato, o ano que se finda foi de todo bosta, com raríssimas excessões. Uma delas, sem dúvida, foi ter conhecido melhor esse japonês inescrupuloso e de carater irrelevante, mas que foi de grande amizade em momentos realmente difíceis. Ivan Kano, notoriamente conhecido como ciclobásico, fez deste ano algo para ser lembrado por muito tempo. Podemos nos encontrar daqui há duas décadas e lembrar de 2006 como o ano em que consolidamos essa amizade e participamos de cenas e atos que não vão se apagar tão cedo, coisas que passam do abraço decepção pós-perda-de-bolsa-do-mestrado e vão até um insano videokê e uma certa música da Ana Carolina. Com ciclobásico compreendi que dá pra fazer muita coisa com o pouco que se tem quando se reconhece esse pouco, sem desesperos, como algo maior. Não é uma ironia auto-ajuda pró-zíbia gaspararetto, Ivan realmente me fez rever o que tinha desenhado para mim como real. A desgraça pode ser bela, nem que seja por um minuto. 2006 foi um ano difícil no quesito grana e nesse ponto, já que se trata de uma retrospectiva, não posso deixar de citar que carreguei nesses doze meses (ainda incompletos) o estigma da bolsa sonhada e perdida que fez com que tantas outras coisas ruins acontecessem e prejudicassem a mim, meus pais e pessoas próximas de que gosto tanto. No entanto descobri um grande incentivador e talvez o maior motivo por eu estar levando esse mestrado tão a sério, o professor Silvio Renato Jorge, que me fez perceber e descobrir os potenciais e as possibilidades que eu mesmo desconhecia enquanto aluno. Sem bolsa, trabalhei nos mais diversos campos, desde a venda de livros até a revisão de dissertações (logo eu) passando pela sala de aula (mais por prazer que por grana). Só não tentei o michê porque sou feio, baixo, gordo, estranho, esquisito, imperceptível e inútil... A bolsa, sem dúvidas, me fudeu! Mas contornei com a ajuda de amigos como o Ivan, de pessoas como o Professor Sílvio, de lembranças como as que tenho de 22 de abril deste ano e de tudo que sempre espero que aconteça antes de estourar uma cidra cereser só por cacoete. Pode ser cedo para um balanço desse tipo, talvez seja mesmo já que ainda nos restam tantas emoções, como o aniversário do reverendo Morais em dezembro. Pode ser. O ano de 2006 divagou sobre mim, desfez todas as expectativas que criei sobre ele e quando me surpreendeu positivamente fez questão de mostrar que era por pouco tempo. Bolas. Esse texto é pra Takashi Kano, também conhecido como Ivan, por que percebi em seus olhos a mesma coisa que encontrei nos meus quando soube do resultado das bolsas, no fundo acho que ele foi o único que atingiu a dimensão do fato e compreendeu que não se tratava de uma questão de orgulho e confiança em excesso. Creio que o professor Silvio também compreendeu e procurou me incentivar de várias formas e me colocar novamente no rumo academico das coisas. Meus outros amigos, cada um de seu jeito, perceberam o que realmente se passou, mas, até como forma de minimizar minha dor de momento, procuraram outras maneiras para tratar o assunto. Enfim, escrevo tudo isso para dizer que este natal não terá as mesmas cores do anterior, algo me diz. Também não quero e nem posso planejar nada pro ano que vem, vai que acontece o mesmo outra vez. Lembro perfeitamente que tinha planejado em comprar uma camera digital caso conseguisse a bolsa, ainda que fosse em prestações e tudo mais. Um pequeno capricho material. Ao invés disso saí na busca do da passagem e se sobrar a gente lancha. Mas deve ser isso, que graça tem se tudo der certo? Esse texto pode ser criticado, chamado de melodramático até, mas foda-se, esse não é um momento literário. Parafraseando o mano Brown, 2007 que venha armado que por aqui o bicho tá pegando. No mais, um Save Ferris pro Ivan e um grande abraço ao professor Silvio. Natal bão só mesmo no Japão.

Wednesday, November 08, 2006

ITABIRA É SÓ UM RETRATO NA PAREDE, MAS COMO DÓI...


Foi há algum tempo. Estava deitado numa cama de hotel e, mais uma vez, imaginava minha vida em desdobres que só mesmo minha cabeça de sonho infantil podia querer nesse mundo de humanos. Um fluxo de consciência que foi enganando o tempo enquanto via você dormir e pensava ser aquela a primeira de muitas vezes. Já devia ter descoberto há mais tempo que não se deve prever em um o que se pretende em dois. Foi assim que evaporei umas angústias que tinha guardadas dessa vida e as joguei do terceiro andar de um hotel que não lembro o nome, num bairro que já esqueci e no qual mal sei chegar novamente se ousar fazer o mesmo percurso. Sim, acredito na literatura dos momentos. Talvez por isso goste tanto dessa coisa fragmentada que vai procurando escoras nas imagens e nos gestos mudos de um olhar fotográfico. Mirei teu corpo de maneira a não esquecer por bom tempo. Forte laço essa da memória que começa já de maneira inventada e cada vez que é retomado assume novas imagens em si. Foi esse ano, e foi de forma tão natural que chorei os entantos de uma amor-alguém que não fazia idéia por chorava e que só percebo hoje que seco o pavio do abraço. Não se trata de felicidade ou de lamentos pós-derrota que retornam, tempo em tempo, para assaltar a vida já tão trombada. Foi verdade. Talvez, num canto qualquer do rodapé da página, ainda o seja. Mas de que isso realmente importa? É um fato: vejo a rodoviária todas as manhãs e procuro a báia na qual embarquei certo dia, cheio de dúvidas e ansioso por tudo que enfim parecia maior. Foi há algum tempo e todo tempo se decompõe em restos de memória, que me preenchem as mãos e o vazio do olhar que se forma toda vez que abafo o desejo de voltar ao então.

Saturday, November 04, 2006

MANUAL DO SONO OU NOVAS POSIÇÕES PARA DORMIR



No dia em que minha avó materna morreu não percebi de fato quantos silêncios ainda teria de enfrentar na busca curiosa por sua voz. Ela se foi numa manhã meio estranha, que não lembro o dia exato e faço questão de não perguntar às datas. Meu primo mais velho chegou perto de mim soluçando um choro incompreensível e me abraçou. Calei minhas lágrimas naquele momento prevendo que teria de restar alguém com a cabeça no lugar pra acertar um pouco as coisas, mesmo sendo eu o mais novo, mesmo sendo o eu o único que não tinha conhecido todas as artimanhas de minha avó. Lembro desse dia sempre que procuro motivos para não chorar. Ouvi dizer uma vez que as pessoas que não choram retêm dentro de si uma composição fisiológica que pode ocasionar reais malefícios à saúde. Em mim, o único impacto foi a lembrança insistente dessa dificuldade do pranto. Acho que por isso, quando te encontrei, quis te beijar unicamente. Não caberia palavra nenhuma, eu sabia. Mas nada nunca é sem já ter sido. Você está maluco? Não. Seu louco! O que quer? Quem é você? Eu só quero um beijo. Um beijo seu. Ela olhava espantada pros meus olhos e acho que conseguiu encontrar alguma coisa que comprovasse a intenção livre de desnecessárias maldades. Beijou. Deixou que os olhos se fechassem gradativamente no mover unilateral das cabeças reclinadas. Beijou um beijo sem gosto de nada além de beijo e deixou o gosto de beijo que só um beijo beijo pode deixar. Meu nome é... Não diga! Você pediu um beijo, te dei o beijo, pronto. Se virou e se foi pela calçada como se nada tivesse acontecido. Lembro que ainda muito depois do falecimento de minha avó eram nítidos e até incomodavam um pouco os sinais tão recentes de perda em minha mãe e minha tia. Entendia ou ao menos tentava entender o quão duro deve ser perder um pai ou uma mãe, mas a situação destravava qualquer reação. Não podia dizer nada. Nada que eu fizesse ou tentasse amenizaria a dor que elas traziam no peito. Sabe-se lá que questionamentos elas levantavam aos céus pra tentar encontrar o motivo do acontecido. Questionar as decisões de Deus pode ser muito simples para quem não o tem como um parâmetro referencial para a vida, mas para as duas, acho que tornava tudo mais difícil. Procurei me esquivar de embates diretos em busca de reanima-las. O tempo não cura nada. Não está no tempo a capacidade do esquecimento ou da aceitação. O tempo apenas empresta ou aluga seu espaço virtual para os sofrimentos e as alegrias, e eles duram o exato espaço que podem pagar ou que conseguem emprestados.
Da janela olhava para a rua meio vazia, escura e não conseguia desguiar de teu beijo. O beijo sem nome e sem gosto que tanto rodeava minha falta do que fazer. O metrô é o transporte mais seguro e confiável que eu conheço. Nunca viajei de avião, mas acho difícil que eu goste tanto quanto do metrô. O espaço físico estudado e pequeno onde se acomodam muitas pessoas de diferentes naturezas. Todas ouvindo a mesma música ambiente. Todas apreciando a mesma subterrânea paisagem de nada. O ar condicionado controlando a inoportuna temperatura de um vagão sem entradas naturais de ar. A voz esquisita e fanha avisando a proximidade das estações. O metrô me leva sem muitas paradas onde quero ir. Desço. O telefone toca. Alguém querendo saber onde estou. Desligo na cara. Subo pelas rolantes até o saguão. Bebo um cafezinho numa pequena lanchonete do próprio saguão.O telefone toca novamente. O mesmo número. Desligo o aparelho. No dia em que eu retornar talvez haja lugar pra essas coisas. Vou para a rua cumprir minhas obrigações profissionais. No sinal, faixa, a espera do vermelho. Olho pro outro lado, entre os velozes veículos, uns maiores que os outros, como toda a simetria irônica do mundo, vejo teu rosto escondido por metade nuns óculos escuros. Tento acenar de alguma forma, mas me vem a idéia de que não lembrarás de mim. Óbvio que não. O sinal fecha, atravesso. Vou de encontro ao seu corpo numa espiral instintiva que quer um esbarrão intencional. Não é preciso. Você levanta os óculos, me reconhece. Sem falar nenhuma palavra me pega pelo braço e me faz retornar para a calçada de onde saí. Oi, senti sua falta menino estranho. Também. Acredite, pois é verdade. Acredito em você. Se não acreditasse não teria lhe beijado naquele dia. E porque não quis dizer teu nome? Porque não foi isso que me pediu. Agora lhe digo. Me chamo Maria. Sensível, como teu beijo. Ah, sem essas besteiras românticas. Tenho que ir, está aqui meu telefone, quando quiser me liga. Tudo bem. E ela se foi sem perguntar meu nome ou, ao menos, se interessar por coisas de mim. Ia pela rua com o mesmo andar da primeira vez. Resmunguei alguma farpa inconsciente. Um senhor me salvou da fúria de um taxista que quase me atropelou. Maria tinha um foda-se em cada intenção. A última lembrança que tenho de minha avó viva é bem distante. Ela, em sua casa, brincava comigo dizendo que sabia o nome da menina que eu gostava no colégio. Lembro dela chutando várias iniciais e errando todas, mas no fundo eu acreditava que ela sabia. Estava me testando, creio. Queria que eu mesmo falasse, mas minha convicção de fracassos amorosos juvenis fundou em mim um escapulário restrito apenas aos meus lamentos. Ela mudava de assunto, parecia entender meu resguardo em silêncio. Descascava laranjas como ninguém. E fazia um bife mal passado como poucos que já comi. Por isso não quis vê-la na cama de um hospital público, entre tantas outras mulheres tão ou mais doentes que ela. Hoje me pergunto se não teria ajudado visitá-la, dar-lhe um beijo na testa, fazer um carinho no rosto. Minha mãe e minha tia sempre retornavam de lá mais tristes e com a certeza de que não iria durar muito mais aquele lamento. Pena a certeza ser tão convicta e negativa. O real não tem cura, repetia pra mim enquanto disfarçava na leitura do Cândido. Minha avó devia ter uns muitos motivos para querer que lembrássemos dela sorrindo bonito como sempre fazia. Meu primo mais velho me disse que nunca poderíamos nos separar, ele, seu irmão e eu. Éramos três seguindo por um, ou por uma. Minha avó também se chamava Maria, apesar de todos usarem seu segundo nome como referência. Ela tinha a mania de sorrir para a tv em aprovação às falas dos artistas de novela. Quantos noves há em seu telefone.
Esta manhã recebi uma carta sem remetente. Nela vinham umas propagandas de financeiras onde umas moças bonitas sorriam marfins e pérolas em busca de meu CPF. Rasguei e voltei a dormir. Há muito tempo não meço meu sono pela normalidade alheia. Durmo quando tenho vontade e nunca é na hora em devia estar dormindo. Isso não tem me feito mal. Ganhei belas olheiras, meio fundas, bem escuras. Falta coragem pra te ligar daí se vai o sono. A covardia é a maior virtude de um homem, diria algum sábio hindu numa aldeia distante ao norte do Tibet. Já cheguei a discar cinco números, mais dois e quem sabe ouço sua voz. Faz uma semana que estou nestas inúteis tentativas. Ainda lembro do senhor me puxando pelo braço e gritando comigo: Quer morrer meu jovem? Minha resposta seria um talvez. Uma incerteza como esta que agora me perturba e não permite nem que eu ligue, nem que eu rasgue o papel com seu numero e tente te esquecer. Seis é o último número e o telefone refaz o barulho seco de minha barriga em pânico no chamado da linha. Alô. Maria? Sim é ela, quem deseja? Sou eu, o rapaz do beijo... Nossa você demorou a me ligar hein. Achei que não o faria. Quase morri naquele dia. Eu vi. Se não fosse aquele senhor. Então, eu vou aí ou você vem aqui? Como assim? Ué, não vamos nos ver? Sim, claro... mas... Mas o que? Na sua casa ou na minha? Não sei. Então vem pra cá. To te esperando em uma hora, anota o endereço. A rua e o bairro eram vizinhos quase da minha casa. Não seria demorado chegar, até pela hora avançada. Não há muitos ônibus a essa hora, mas também não há trânsito. No caminho uma senhora me parou e pediu um trocado para a condução. Dei umas moedas me questionando em qual bar ela compraria a primeira dose de pinga. Depois duvidei. Enfim a vi subindo no coletivo a caminho de algum lugar que certamente não conheço e que me fez calar os pensamentos por um bom tempo. Cuspi tão seco que quase não chegou ao chão. Maria me esperava no entre vão da janela. Era um sobrado e ela morava na parte de cima. Tinha uns cabelos curtos, bem curtos. Rosto fino com pequenas marcas de noites sem sono. Uma pele branca, inconfundível, e os olhos pretos quase cor de teto. Qual é o seu nome mesmo menino estranho? Acha mesmo necessário saber disso agora? Quase não percebi seu corpo nu por baixo do casaco e suas mãos subindo por minhas pernas. Não entendia bem a situação, mas de fato não caberia nenhuma especulação no momento. Certa vez escrevi um poema imbecil que falava de amores impossíveis. Me lembrava de cada verso enquanto a boca de Maria deslizava bruscamente por meu corpo. A flor morta que insiste em ser bela / na natureza plena e singela / de mais um cansado desamor. Maria desencantava o silêncio no prazer da não necessidade de falar. A noite era a dentro e detínhamos a parte de nós mesmos que encontramos um no outro.Vi Maria em minha frente. Vi Maria me sorrir de lado. Vi Maria pelos pés. Vi Maria mais alta que eu, sem me deixar a menor defesa. Até cair sobre meu corpo em declínio lento e repousar os dedos na borda de meus lábios secos. Bebia a lentidão de seu ar. Logo após a morte de minha avó, fui até a casa em que ela morava. Tínhamos que limpar o local, tirar as coisas. Guardar as lembranças em matéria que tanto dizem quando se quer lembrar de um minuto em específico da vida que se tem e da vida que se foi. Coube a mim um par de chinelos acolchoados, um tipo de pantufas que ela só usava antes de dormir. Veio então o dia em que ela retornou do hospital por ter se sentido muito mal – talvez tivesse sido ali o principio de tudo. Lembro de ter dormido com ela nesta noite seguinte ao seu retorno. Fiquei acordado toda a madrugada com o medo recente de que ela pudesse se sentir mal. De quando em quando levantava e de longe, mesmo no escuro, fitava seu corpo sob o lençol procurando sinais de sua respiração. Pela manhã, enquanto fazia o café, me falava de ter percebido minha preocupação. No fundo sabia que a preocupação era dela também. Quando olho pros chinelos penso nas noites em que ela, junto de minha mãe, não tenha feito o mesmo comigo ainda bebê, após qualquer pequena crise de bronquite ou febre mais alta. Quando ela se foi, eu tinha cerca de quinze anos e ainda não sabia qual o real gosto de uma mulher. Não tinha passado por nenhuma situação delicada em que precisasse recorrer a ela em busca de uma solução que fosse. Não sabia o quão difícil é o aceitar que meu mundo não é pior que o de muita gente. No dia em que minha avó morreu, talvez não tenha restado muito pra lembrar - eu disse talvez. Ela sabia recortar-se em muitas e ser sempre a mesma. Mas as bicicletas têm apenas duas rodas. Não são como os ônibus, como o metrô. Ela almoçou em minha casa dias antes de tudo ocorrer. Depois não mais a vi se não estática no instante exato e revelado da fotografia.
Olhava-a com a candura de quem procura o ponto fixo da respiração. Estava viva ao meu lado. Dormia como gostaria de dormir por todas as noites que não lembro ter visto a não ser pela tv. Maria tinha as mãos contornando o travesseiro e o corpo nu exposto, quase todo não fosse a ponta de seu casaco. Olhava-a e me veio então uma desmedida vontade de chorar. Eu era o mais novo, tive de preservar a razão, mas agora era diferente. As inicias chutadas por minha avó na minha recordação vinham agora e a primeira era o M. Caiu a primeira lágrima sem que eu sentisse e a segunda veio, depois as contas se embolaram nas metáforas e no medo e no desespero e na vontade de não ter mais vontades e nas lembranças desencontradas de um passado próximo e de um próximo passado. O que foi? Por que está chorando menino estranho? Tenho medo. Medo de quê? De tudo. De mim , de você. Maria se sentou ao meu lado na beirada da cama e me deu o único tapa na cara que tomei na vida. O estalo acordou o som. Olhei para ela no silêncio sem reação e ela me beijou cegamente, como da primeira vez que nos vimos na rua. Me deitou ao seu lado e me fez adormecer com a mesma mão que havia me batido. Dormi pesadamente como não lembro ter dormido antes. Apesar disso tive a sincera impressão de vê-la, durante o sono, fitando minha respiração.