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Nos idos de 2006, recebi pelas mãos do autor um pequeno livreto de poemas intitulado Internações. Na época, em meio a muita bebida e comida de qualidade, quase não me apercebi dos versos que povoam as dezoito páginas que formam o volume. Dia desses, remexendo aquela caixa de papelão que todo ser humano que se preza tem no canto do quarto, encontrei o poemário do senhor Lustosa da Costa. Resolvi ler com a calma necessária. É engraçado como conseguimos nos surpreender ainda nesse mundo. A reunião de poemas do senhor Lustosa reitera a fé itinerante dos que ainda almejam por ler interessantes e atuais versos. O que torna o livreto mais agradável é perceber como o autor se desdobra nas palavras e em suas tentativas de atingir as imagens que deseja compor. Aberto pelo poema Outra lírica, uma espécie de prefácio versificado, o poemário segue num ritmo que mescla homenagens e referências à Adélia Prado, Ferreira Gullar e Guimarães Rosa, com sutilezas literárias como a do belo poema Vamos comer Clarice :
Vamos comer Clarice
Temendo querendo te-la
Em suas partes mais íntimas, tangíveis.
Dar dor à Clarice que nos doa
Impiedosamente detalhista
Profunda, profícua.
Ou ainda no cartográfico Rodoviárias, no qual encontramos uma voz poética preocupada com a estética do verso, mas sem abandonar seus temas atuais e, porque não dizer, atemporais na tentativa de retratar o homem em seu ambiente de vida, no movimento:
Existe um povo estranho ao redor das rodoviárias. É um povo seco – que se
hidrata nos bares. Um povo só – que se acompanha nos prostíbulos, com
a alegria evasiva dos puteiros. Com a fé imoral dos fanáticos. Um povo
que tem, em suas veias agrestes, levantado cidades cheias de saudades
e sonhos. Os pés Di Cavalcanti, os retirantes Portinari e uma baleia
latindo aos pés. Um povo de choro quente e difícil.
É claro que Internações também tem seus momentos poeticamente complicados, desses que nos fazem lembrar de poemas de outrora como Baleias, mas os momentos felizes são superiores e chegam a pontos altos como o dos poemas citados e do excelente Poesia diária. No pequeno universo poético criado por Lustosa da Costa nessas dezoito páginas o que sobressai é a nítida intenção de se fazer algo novo, mas sem as pequenas especulações meramente estéticas. Algo em que encontramos um comprometimento sadio com a literatura e com os temas escolhidos pelo autor. Um comprometimento com a palavra escrita e seus ecos no em branco da folha.
Para os que se interessarem e quiserem ler mais de Lustosa da Costa:
http:://ideiasaderiva.blogspot.com
Há alguns bons anos atrás, fui participar de um evento literário no auditório do tribunal de contas do Rio de Janeiro. Lá estavam escritores e jornalistas fluminenses, talvez não os mais relevantes, mas certamente os mais experientes, maldosamente falando. Vimos a apresentação de alguns dos citados figurões e, depois de um tempo, chegou a vez dos mais jovens, no qual me incluo aqui, recitarem alguns de seus poemas. Imaginem. No fim, alguém muito inspirado deu a brilhante idéia de juntarmos todos para tirar uma fotografia que ‘eternizasse’ o momento. Meu pai, que estava presente, parou entre meu primo e eu e disse a frase mais relevante daquela tarde: “Sorriam, pois, para muitos aqui, essa fotografia pode ser a última.” Pois é, depois disso outros anos vieram e trouxeram muitas histórias boas, das quais não me lembro de todas, mas sei que estão aqui guardadas, prestes a aparecer ao primeiro cheiro de uma Madaleine. Dois mil e sete me parece ser o ano apropriado para isso. Essa semana e meia vem mostrando que não se deve planejar nada mesmo. As coisas acontecem independente da nossa virtuosa mania de comandar o mundo. E essa sensação, de deixar que as coisas corram por si só, deixa mais tempo para que as lembranças aflorem e as histórias me reapareçam com mais graça e realidade que no próprio dia em que aconteceram. O natal dos sem família em 2005, com a inesquecível cena de Fabiano Morais aparecendo do nada para elogiar o sanduíche de pernil do Cervantes. O dia em que eu e dona Norma raspamos quatro tabuleiros onde foram assados os frangos de um natal distante. O bloco do ‘Se melhorar afunda’; os ciclos do Conversando Literaturas; a sessão de Blow-up; e tantas outras histórias que esse grupo de amigos dedicou ao caráter fixador do tempo. É o tempo que me parece a chave para entender essa coisa que chamamos de vida. Não, não se trata de entender o tempo. Trata-se de não leva-lo em consideração, pelo menos não como querem que levemos. Eu quero estar aqui agora, escrevendo sobre coisas sem importância, imaginando meus cinco ou seis leitores eu conhecem e visitam esse endereço eletrônico, sem me preocupar com a hora em que vou terminar o texto. A memória involuntária de Proust e seus caminhos de Swann são um pouco disso. Espero que essas linhas tragam outras lembranças de nosso tempo à mente dos que por aqui passarem. Dois mil e sete e o nosso eterno jogo de lembrar e de esquecer.